última noite em tremor: um conto edipiano contemporâneo
- melody erlea
- 7 de nov. de 2024
- 3 min de leitura

no conto arrival, do ted chiang (que depois virou um magnífico filme com a amy adams e o forest whitaker), é proposta uma perspectiva muito interessante sobre "viagem no tempo": a de que ela funciona, essencialmente, como uma lembrança do passado. viajar "ao futuro" seria simplesmente conseguir ver os acontecimentos futuros - da mesma maneira em que vemos os acontecimentos passados ao nos lembrarmos dele.

essa "visão do futuro" é a mesma coisa que uma lembrança e, posto a natureza abstrata e fugaz da lembrança, não podemos mudar nada que acontece nela. e do mesmo jeito que os acontecimentos passados moldam quem somos, assim também acontece com acontecimentos futuros - se tivéssemos a habilidade de enxergar e prever o futuro, seríamos pessoalmente responsáveis por garantir que ele se cumpra. da mesma maneira que o passado aconteceu e é imutável, e quem somos é intimamente dependente dele, o futuro também seria intocável, e uma vez que tivéssemos acesso a ele teríamos o dever de segui-lo.
quase como uma peça de teatro: embora todos os atores saibam as falas seguintes, o desenrolar do roteiro e o fim, o desenrolar e o fim só podem acontecer se cada um declamar suas falas e cumprir seus papéis. ou como uma cerimônia religiosa de casamento: a gente sabe o que o padre vai dizer, sabemos que os noivos dirão sim no final e que estarão, enfim, casados - mas se o padre não disser o que ele precisa dizer e se os noivos não disserem os respectivos "sim"... eles não casam.

o futuro é um ritual do qual não conseguimos fugir. como um oráculo grego, como um irrefutável destino edipiano, ao saber o futuro só nos resta cumpri-lo - e todas as tentativas de mudar o desenrolar dos eventos só servem pra nos levar de encontro ao destino previsto.
na série a última noite em tremor, disponível na netflix, o protagonista álex se encontra preso num loop de passado, presente e futuro entrelaçados, do qual tenta, em vão, se desvencilhar.
amaldiçoado com o mesmo transtorno que afetava sua mãe, diagnosticada com esquizofrenia e internada voluntariamente numa clínica pelo resto de sua vida, àlex é atormentado com visões fragmentadas do que ele acredita ser o futuro - e do qual quer, desesperadamente, fugir. é com esses fragmentos que nós, espectadores, tentamos conectar os eventos passados e presentes da vida dos diversos personagens da trama e fazer algum sentido do possível caminho a ser seguido.
é indiscutível que álex, como sua mãe anos antes, se aproxima cada vez mais de seu triste destino a cada ação tomada para evitá-lo, e a angústia do personagem, potencializada pelas visões do futuro e pela descrença de seus amigos e familiares, contamina cada aspecto de sua vida - seja a convivência com os filhos, o romance com uma mulher também atormentada (embora por razões completamente diferentes), a conexão com sua mãe, a história trágica de sua juventude e seu primeiro amor, a amizade com seus misteriosos vizinhos, os motivos de seu casamento e divórcio, ou o desenrolar de sua carreira como pianista.

cada momento da vida de álex contribui para o desfecho aparentemente imutável imposto a todas as pessoas que cruzaram seu caminho - e é a elas que álex tenta salvar a cada tentativa de mudar o futuro. há momentos em que a vontade é de gritar: desista, amigo, você é apenas mais um édipo contemporâneo infalivelmente destinado à tragédia; não percebe que é você mesmo, ao tentar agir contra o destino, que engatilha as engrenagens do tenebroso porvir? mas não adianta - dentro de sua própria história fragmentada, álex não consegue ver o todo e muito menos enxergar sua responsabilidade no desenrolar dos eventos.

o conhecimento mitológico do futuro revoga, irremediavelmente, nosso livre arbítrio - a única maneira de tomar decisões reais e ter algum tipo de controle sobre os acontecimentos da nossa vida é renegar, sem volta, qualquer conhecimento que possamos ter sobre o que vem adiante.