um tiquinho de fantasia e um dedinho de política: as roupas nos livros de margaret atwood
- melody erlea
- 21 de out. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 3 de nov. de 2024

terminei recentemente de ler cat's eye, da margaret atwood, que curiosamente é o primeiro livro que conheci da autora canadense, em 2009 quando esbarrei pelo incrível mundo da interwebs no seguinte trecho:
“When I am lonely for boys it’s their bodies I miss. I study their hands lifting the cigarettes in the darkness of the movie theaters, the slope of a shoulder, the angle of a hip. Looking at them sideways, I examine them in different lights. My love for them is visual: that is the part of them I would like to possess. Don’t move, I think. Stay like that, let me have that.”
em 2013 entrei numa livraria decidida - esse trechinho seguiu na minha cabeça por anos, me assombrando e me encantando. eu queria ler esse livro. fui embora da loja sem cat's eye, mas com handmaid's tale nas mãos, sem ter a menor ideia do que me esperava naquelas páginas. lembro que contei sobre o livro pro meu namorado da época, expliquei a premissa e a história e ele respondeu "e você tá LENDO uma coisa horrorosa dessa?"
literatura, assim como arte, nem sempre é sobre o bonito. na maioria das vezes é sobre o espaço, a linha tênue entre o bonito e o horroroso. é sobre as relações humanas que se estabelecem até nos contextos mais inimaginavelmente horripilantes. é sobre de repente se ver espelhado ali - medos, desejos, ideologias, nosso lado mais sensível mas também o nosso esgoto - e se reconhecer numa narrativa que você condena. porra, isso é intenso demais.
é também sobre se descobrir, se entender naquele novo universo proposto e reconhecer que tipo de pessoa você seria se colocado ali, naquela situação hipotética. é por isso que o dom casmurro até hoje incendeia discussões, é por isso que o primo basílio e o padre amaro causam tanto fuzuê. é por isso que o dorian gray dá tanto o que falar. porque no fim das contas, quando é a gente se deparando face a face com um livro, não é sobre o livro, sobre o autor ou sobre os personagens é sobre como a gente se posiciona, com quem a gente se identifica, em que acreditaríamos caso estivéssemos lá, dentro da história. e aí a gente descobre cada coisa, é complexo. deve ser por isso que tanta gente não gosta de ler, dá medo o que a gente descobre sobre nós mesmos.
em 2019 finalmente consegui ler cat's eye por inteiro. finalmente aquele trecho que me acompanhou nos meus 20 e poucos anos foi apropriadamente associado a um livro, a personagens e a uma história.
cat's eye segue a vida da protagonista elaine, uma pintora, desde sua infância no norte do canadá durante a 2ª guerra mundial, passando pela escola, faculdade, os movimentos feministas dos anos 70 até os dias de hoje.
assim como em todos os livros de atwood que eu li, a roupa é usada como detalhe base pra construção das personagens - especialmente as mulheres mas não apenas. margaret atwood é uma gênia quando se trata de descrever personalidades e características de um personagem através das roupas.
no caso de cat's eye, eu me encantei com as descrições das roupas da infância da personagem: seu uniforme escolar, uma saia xadrez com meias e sapatos pretos, que elaine e suas amigas vestiam por baixo das pesadas calças de neve que elas precisavam usar no inverno, no caminho entre suas casas e a escola.
além desse uniforme, que acaba muito associado ao tempo que a protagonista passa com suas amigas na infância, a personagem também veste muitas roupas que eram de seu irmão: camisetas, moletons, macacões.
esse não era hábito incomum a muitas das famílias que eu conheço - e só posso imaginar que em tempos de guerra e escassez isso fosse tão natural que não havia motivo para discutir o gênero daquelas roupas. quando se trata de roupa de criança, não há (ou não deveria haver) muita diferença.
essa relação da protagonista de cat's eye com suas roupas veio diretamente da experiência pessoal de atwood, que era uma criança na 2ª guerra mundial, usava os exatos uniformes escolares que ela descreve no livro e já mencionou que habitualmente vestia as roupas que haviam sido do irmão mais velho - que margaret lembra não serem consideradas roupas de menino ou menina, mas apenas roupas.
o papel que atribuímos às roupas depende da necessidade da sociedade e do mercado naquele momento. para crianças em período de guerra, ninguém era beneficiado se muita roupa fosse consumida sem necessidade, e a própria falta dos recursos - que estavam alocados nos esforços de guerra - fazia com que não houvesse muita oferta. nesse contexto, as roupas infantis acabam se tornando neutras, para que irmão e irmãs possam dividi-las e para que não haja desperdício. em épocas de aceleração econômica, quando há interesse das corporações em produzir e vender mais, segmentar os gêneros e atribuir cores e peças específicas para meninos e meninas passa a ser o status quo, porque garante que mais itens serão consumidos.
numa entrevista sobre outro de seus livros, the blind assassin, margaret diz que é justamente uma diferença de vestuário que faz o leitor compreender que personagem está narrando o livro - significa que se a gente não tá antenado em como roupa pode nos ajudar a compreender a personalidade de alguém, a leitura é incompleta, nossa interpretação dos personagens errônea.
em muitos e muitos momentos de outro best-seller da escritora, alias grace, roupas são minuciosamente descritas. a protagonista, grace, está presa desde a adolescência acusada de assassinato e lê as pessoas e suas intenções através de suas roupas. olhando para os sapatos, lenços, chapéus e detalhes minuciosos como costura e limpeza das unhas, grace sabe dizer quem é rico ou pobre, casado ou solteiro, quem dormiu bem à noite e quem tá tentando esconder a própria pobreza. o vestido que usou no dia de seu julgamento é uma metáfora poderosa para os paradoxos de grace. é um vestido que costumava ser precisamente da mulher que grace é acusada de ter assassinado.

é esse vestido que faz muitas pessoas a verem como uma pessoa seca, sem coração e sem misericórdia: uma mulher que tem a frieza de usar o vestido de uma morta só pode ser culpada. por outro lado, grace, uma empregada doméstica, tinha apenas seu vestido surrado de trabalho, e havia sido aconselhada por seu advogado a usar uma roupa nova e limpa no julgamento, para que o júri não a considerasse suja e feia (mulheres sujas e feias também tem mais cara de culpadas do que mulheres limpas e belas) - grace não viu outra solução a não ser pegar um vestido usado, porém mais aceitável que o dela, que a seu ver não teria mais uso.
seria isso a frieza de uma assassina ou apenas o pensamento lógico de uma mulher que sabe que é constantemente julgada independente de ser culpada ou não? é justamente essa linha tênue que deixa grace no limiar entre a inocência e a compaixão de alguns ou o ódio e o julgamento de outros. a ambiguidade da mulher pura e da mulher demoníaca numa mesma pessoa, e que é traduzida numa escolha de vestuário.
em handmaid's tale essa ambiguidade é resolvida também através das roupas: atwood imagina uma sociedade que não divide seus gêneros apenas em calças e saias ou rosa e azul - cores diferentes indicam classes diferentes de mulheres, e trabalham com uma simbologia das cores que ultrapassa divisões de gênero e mexe com a psicanálise humana.

as sensações e significados que associamos a vermelho e azul, por exemplo, passam a ser usadas para moldar como vemos umas ou outras mulheres. as handmaids, de vermelho, cor que associamos à paixão, ao desejo, ao pecado. ela passam a ser enquadradas como o tipo de mulher que não serve como esposa: elas são pecaminosas e, de certa maneira, sujas. o vermelho de suas roupas nos lembra disso, além de ser uma cor de alerta, de atenção. as roupas vermelhas sinalizam essas mulheres, da mesma maneira que a letra escarlate de nathaniel hawthorne em 1850.
tira-se, dessa maneira, das mulheres de vermelho qualquer dúvida quanto a seus pecados e sua culpa. a cor de suas roupas já deixa claro quem é essa mulher e como ela deve ser tratada.

da mesma maneira, das esposas de azul - cor que nos transmite tranquilidade, serenidade e pureza - tira-se qualquer chance de ser qualquer coisa que não a mulher perfeita sob os olhos de deus, intocável, limpa e a quem se pode confiar o gerenciamento do lar e a criação dos filhos.
no universo de handmaid's tale você é uma mulher culpada ou uma mulher inocente. não há espaço para dúvida.
e acho que esse é um dos maiores trunfos de margaret atwood: mostrar na cara dura como roupa sinaliza a gente, como roupa mostra quem somos e no que acreditamos e como ela pode ser usada para manipular percepções que temos sobre pessoas.
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