de kurosawa a the affair: o efeito rashomon
- melody erlea
- 4 de nov. de 2019
- 7 min de leitura

a série the affair acabou ontem depois de cinco temporadas, mas o grande bafafá pra quem, como eu, abandonou a série na terceira temporada é a canção que fiona apple gravou especialmente pro finale da série, the whole of the moon, originalmente da banda the waterboys.
eu tô amando todas essas surpresas da fiona apple ultimamente - lembram da entrevista pra vulture e dos créditos finais que ela cantou em bob's burgers?
a parceria de fiona com the affair não é de agora - a música tema, container, é uma composição original da fiona pra série, e foi por causa dela que comecei a assistir o programa (isso e uma vontade louca de me afogar em tristeza)
i've only one thing to do and that's
be the wave that i am and then
sink back into the ocean
o refrão da música me remete demais ao fim do conto a sereiazinha, em que ela simplesmente aceita seu destino como espuma do mar pois não há mais nada que ela possa fazer pra consertar aquela situação - ou até há mas não algo que ela tope fazer. é um aceitar-seu-destino carregado de melancolia, mas também um certo alívio. minha versão preferida do livro, e também a que eu tenho desde criança, tem ilustrações que carregam a mesma melancolia da música da fiona, e que também me remetem muito à atmosfera da série, que se passa na praia, em montauk, nas férias de verão, mas é tão sombria e pesada.

não se preocupem com spoilers porque eu vi eu não vi o episódio final e tô mais interessada em falar sobre as duas primeiras temporadas, que são realmente primorosas. a série começa assim: noah, sua esposa helen e seus quatro filhos vão passar as férias de verão na cidade praiana de montauk. numa lanchonete noah conhece a garçonete alison e eles passam a ter um caso.

os episódios são divididos em duas partes: a primeira metade é a versão de noah da história e a segunda metade é a versão da alison. as premissas são duas: a gente distorce a verdade da maneira que pode pra que ela aja a nosso favor E/OU a gente é enganado pelas próprias memórias, que também se submetem ao nosso filtro emocional e a nossa vontade de acreditar numa certa versão da história - e de nós mesmos.
fato é que as duas versões tem diferenças às vezes sutis, às vezes enormes, que vão pintando aqueles personagens de maneiras diferentes, contraditórias, egoístas. no fim, mais do que saber qual versão é mais verdadeira, a série é legal porque nos faz escolher qual versão queremos que seja verdadeira, e isso diz muito mais sobre nós do que sobre a história em si. é a velha história da capitu: não é sobre o que ela fez ou não, é sobre o escancaramento do tipo de pessoa que acredita na traição e o tipo de pessoa que acredita na inocência de capitu. é sobre o tipo de pessoa que cada um de nós é quando nos vemos frente a esse dilema ficcional.
em the affair é maravilhoso ver como as personagens mudam conforme o ponto de vista e como isso é retratado na tela: na versão de noah, alison flerta com ele desde o primeiro momento e tá sempre de minissaia, alcinha fina, mostrando pele, sorrindo muito e encostando nele. na versão dela ela costuma estar de cardigã, ou de calça jeans, com roupas de maneira nenhuma provocativas. alison vê helen, esposa de noah, como uma mulher chique e glamourosa, sempre bem vestida e elegante e dando ordens a seus muitos empregados. na versão de noah, sua esposa é desleixada, tá sempre de óculos, rabo de cavalo e explodindo em gritos de tanto cansaço e stress (afinal eles tem quatro filhos).
nas duas versões, por mais que haja diferenças, é possível ver como o relacionamento escondido de noah e alison vai aos poucos intoxicando todas as relações familiares ao redor deles, como num efeito dominó que a gente não enxerga quem deu o primeiro peteleco, só vai vendo tudo desmoronar. cada um deles preso em sua própria perspectiva, porque o que vemos e como contamos nossas histórias depende radicalmente de nossas referências, valores, memórias, criações diferentes...

essa diferença de perspectiva de diferentes personagens sobre os mesmos acontecimentos chama efeito rashomon, e tem esse nome por causa do filme homônimo de kurosawa de 1950, em que um estupro e assassinato são descritos por quatro testemunhas de maneiras completamente diferentes e contraditórias.
o efeito rashomon é parte atuante de quase qualquer história de mistério do tipo agatha christie em que cada personagem tenta convencer os outros - e ao leitor - de seu álibi. a gente vai lendo, observando cada versão e o comportamento de cada personagem, e tira nossas conclusões. mas tem alguns escritores e cineastas que conseguem usar essa técnica com maestria.

em cidadão kane, de 1941 (9 anos antes de kurosawa lançar seu rashomon - embora ele tenha se inspirado em dois contos do autor japonês ryūnosuke akutagawa, um de 1915 e outro de 1922), o milionário charles foster kane morre em sua mansão e um repórter investiga a estranha morte entrevistando os conhecidos, colegas de trabalho e pessoas próximas de kane. elas nos dão um vislumbre da vida de kane através de flashbacks, e cada uma delas lembra do falecido de uma maneira diferente.
o escritor chuck palahniuk, autor de clube da luta, usa o efeito rashomon em seu livro rant - em que buster casey, o protagonista, sumiu sem deixar vestígios após ser o paciente zero de uma epidemia de raiva nos estados unidos. a história se passa num futuro distópico muito louco, e nós, os leitores, vamos pouco a pouco conhecendo e entendendo quem é buster pelos relatos de seus amigos, familiares, professores, colegas de trabalho e mais um monte de personagens macabros e peculiares que tiveram algum tipo de contato com ele. como costuma ser quando analisamos perspectivas diferentes de uma mesma situação, as histórias sobre ele são absurdas, contraditórias, fantasiosas e loucas.


mais recentemente a escritora de suspenses gillian flynn causou um fuzuê com seu gone girl (garota exemplar, em português), que virou filme com o ben affleck. no livro, amy dunn, esposa de nick, desaparece, e vamos vendo o desenrolar da história através dos relatos de nick e de amy, separadamente, desde quando se conheceram até os acontecimentos alarmantes atuais.
gone girl deve ser o livro de maior sucesso de flynn, mas não é o único em que ela usa o efeito rashomon. em dark places, somos levados a montar o quebra-cabeça do assassinato de uma família inteira no interior dos estados unidos nos anos 80. acompanhamos o dia de cada um dos familiares até o momento do massacre, enquanto questionamos a prisão de um dos suspeitos, ben, um dos dois únicos sobreviventes do crime, e a sanidade de libby, sua irmãzinha mais nova que testemunhou os assassinatos e sobreviveu com suas memórias infantis daquela noite.
mas pra mim o filme que melhor utilizou o efeito rashomon - de maneira tão sutil que a gente nem percebe - foi brilho eterno de uma mente sem lembranças. o filme é sobre a separação de joel e clementine (jim carey e kate winslet), e a gente vai sendo apresentado à história dos dois - e às motivações dos dois para se separarem - através de suas lembranças, do dia em que se conheceram ao dia da briga final. é lindo ver aquela construção de algo entre duas pessoas completamente diferentes, cada uma com seus próprios problemas na cabeça e tentando achar no outro tipos diferentes de acalento e amor. é louco ver como o conflito dessas perspectivas diferentes contribui pro fim do amor, mas também pra reconstrução dele. é incrível ver como as lembranças de cada um estão encharcadas, afogadas nas experiências pessoais e suas próprias carências e falhas.

o que eu mais amo em brilho eterno é que, assim como em the affair, a apresentação estética dos personagens é muito importante pra construção daquelas duas perspectivas e, consequentemente, da nossa ideia daquelas pessoas. a clementine muda a cor de seu cabelo conforme seu humor e seu momento de vida, e isso é parte ativa da estratégia narrativa do filme, nos ajudando inclusive a entender a cronologia dos acontecimentos.
quando conhece joel seu cabelo é verde, cor de renovação e renascimento, e ela usa um moletom laranja chamativo, como alguém cheio de energia transbordando cores fortes e vontade de viver novas experiências. no começo do relacionamento seu cabeço é vermelho, cor da paixão mas também do alerta - saca aquele momento no relacionamento que a gente tá se deixando apaixonar mas ao mesmo tempo meio prestando atenção pra ver se realmente a gente deve fazer isso? o cabelo tangerina que vem depois, é o mais significativo - tanto é que vira a alcunha "clementine tangerine". é o vermelho da paixão já desbotado, o momento em que a vida real começa a entrar pelas frestas e os dois começam a conhecer seus lados menos apaixonantes. e depois que eles terminam, clementine passa a ter o cabelo azul, representando the blues, sua tristeza, sua solidão e a frieza da vida - mas ela volta a usar seu moletom laranja, talvez como um símbolo de tempos melhores que passaram e quem sabe voltarão.

e olha que louco: assim como the affair se passa em montauk, brilho eterno também começa e termina nessa mesma cidade, que existe de verdade no estado de nova york e é um destino comum pra feriados e fins de semana porque dá pra chegar de trem.
dizem por aí que montauk é a sede do projeto montauk, uma série de experimentos secretos do governo norte-americano que incluem viagem no tempo e no hipersepaço e teste de habilidades telecinéticas. a série stranger things é amplamente inspirada nos rumores do projeto montauk (inclusive o nome provisório da série era montauk e ela ia originalmente se passar na própria cidade de montauk)

fiona apple, the affair, garota exemplar, chuck palahniuk, cidadão kane, akira kurosawa, brilho eterno de uma mente sem lembranças e stranger things: as distância que é possível percorrer se a gente olhar direito pra cultura pop!
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